Da minha parte muito obrigado II - sinopse do texto e excertos musicais da obra.


Travessia
Oratório em quatro quadros distribuídos por duas partes
2005

Joaquim dos Santos música
D. Joaquim Gonçalves texto

A Travessia é uma evocação cristã de Trás-as-Montes e Alto Douro, mormente da área diocesana de Vila Real, e, simultaneamente, uma reflexão sobre os desafios culturais da sociedade actual.
A primeira ideia deste texto nasceu durante a preparação das Bodas de Diamante da Diocese celebradas em 1997. Ao programar os actos festivos daquela data jubilar, sentiu-­se a necessidade de algo que sublinhasse a relação vital da Diocese com a geografia e a história de Trás-os-Montes e assim ajudasse a compreender que uma Diocese é mais que um centro de administração eclesiástica, é a própria comunidade local em marcha, com os seus encantos naturais, as tradições do seu povo, os problemas e desafios sociais de cada época, tudo assumido pelo Espírito de Cristo numa síntese de vida. Na verdade, a Igreja não passa ao lado do mundo, mas faz suas as alegrias e as tristezas da sociedade humana, sofre as oscilações sociais da mesma comunidade, assume e purifica a cultura local, e é a qualidade desse intercâmbio da fé com a cultura e as estruturas sociais, as expressões artísticas e a liturgia que define o estado de adultez da fé e da Igreja. É por isso se diz que a mesma e única Igreja de Cristo tem em cada diocese a cor do seu povo e forma, no conjunto das dio­ceses, um arco-íris sobre o mundo.
Daquele objectivo nasceu um texto – a Travessia, que faz a evocação de Trás-os-Montes como um “novo Israel em marcha pelos montes”, tendo subjacente o esquema bíblico do Êxodo. A viagem dos antigos Hebreus fez-se através do deserto e, simultaneamente, no íntimo das pessoas, gerando nelas a consciência de Povo de Deus que não tinham ao sair do Egipto. Foi uma viagem exterior e interior, social e religiosa, a caminhada de um Povo em construção. É desse género o percurso de uma diocese: uma comunidade com dimensão interior e exterior, espiritual e com reflexos sociais. De resto, como diz António Quadros, só há viagem por dentro das pessoas, por fora há deslocação.
Da narração do Êxodo extraíram-se quatro quadros capazes de exprimir a nossa história: a distribuição das tribos, onde vão desenhadas as mini-regiões locais e alguns traços da sua identidade cultural; as tentações do deserto ou a evocação das mudanças sociais e passagem da vida rural para a nova sensibilidade urbana; os frutos da terra prometida, um apontamento sobre as belezas e os recursos naturais; e, finalmente, a despedida de Moisés e a passagem do Jordão, ou seja, os desafios lançados pela cultura tecnicista e secularizante do novo milénio.
O texto primitivo da Travessia tinha a forma de um simples auto e destinava-se a ser recitado em actividades juvenis no ano de 1997, mas a escassez de tempo não permitiu a sua utilização pastoral. A passagem do milénio e a “Carta do Papa aos Artistas” na Páscoa de 1999, a lembrar que a pastoral deve tentar as expressões artísticas porque a beleza é o rosto atraente da verdade, aconselharam a remodelação do texto primitivo, dando-lhe uma nova feição destinada a outro público. Mantém o nome e o plano ao estimado compositor e a alegria por ver o “Reino Maravilhoso” transfigurado, a cantar.
(…)

A Travessia transmontana vem a fazer-se há séculos, englobando geografia, economia, cultura e religião. O “Egipto” donde partimos é a austeridade do clima e a limitação dos recursos naturais da nossa terra. Mas esta terra é também a “terra prometida” na medida em que é aqui que temos de vencer.
Esta Travessia transmontana é símbolo de outras travessias sociais e culturais, sempre subjacentes ao texto

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A distribuição das Tribos
1º quadro

A nossa "Distribuição das tribos" aparece logo no início da viagem como lugar de partida e de chegada, um facto da natureza e uma missão histórica. As “tribos” correspondem às actuais oito zonas pastorais da Diocese acrescidas do Seminário e fazem memória da multiplicidade dos vários povos que desde há séculos viveram dispersos por estes montes. Lembram-se “os velhos castras, povos e vezeiras” e os nomes de alguns povos pré-romanos “a quem foram dados montes e ribeiras”, briosamente assumidos como um “testa­mento” e “dote” das origens.
Os nomes de alguns desses povos estão gravados numa coluna encontrada no rio Tâmega, em Chaves, e guardada no respectivo museu, conhecida como «Padrão dos povos». Ci­tam-se aqui os Equaesi e os Turodi, que terão vivido desde o Gerês (dos dois lados da actual fronteira) até Vila Pouca de Aguiar; os Tamagani, nas margens do Tâmega (em terra es­panhola ainda hoje há os topónimos “tamagos” e “tamaguelos”); e os Calecci, desde o litoral, ou ao menos desde o rio Ave, até ao Marão.
Alude-se também à posterior romanização de Trás-os-Montes, de que há muitos sinais, nomeadamente em Chaves, em Jales e no lugar de Panoias. Na reorganização romana do território o rio Douro foi limite norte da Lusitânia. Na época medieval, a antiga “terra de Panóias” era um centro adminis­trativo muito vasto, estendendo-se desde o Marão até ao Tua.
Dos velhos cultos pagãos praticados em Trás-os-Montes há referências ao javali (berrões), a reva (deus das trovoadas), a deuses orientais (no santuário pagão de Panoias) e a serpentes (pitões) no castro da paróquia de S. Tomé do Castelo, em S. Miguel da Pena e noutros lugares.
A fé cristã chegou muito cedo a estas terras, como atestam a diocese histórica de Aquae Flaviae ou Chaves com o seu único bispo Idácio, no séc.V. A Diocese de Vila Real só foi criada em 1922. Nessa data, o actual território diocesano estava distribuído pelas dioceses de Braga, Lamego e Bragança. Embora já fosse um distrito civil, ainda não constituía uma igreja diocesana, “não era um Povo”. Desde 1922 tem a uni-lo o vínculo diocesano e tomou-se um “novo Israel em marcha pelos montes”. Todo o passado é assumido pelo presente, rumo ao futuro.

As tentações do deserto
2º quadro

O quadro das “Tentações do deserto” alude à mudança gradual dos costumes em Trás-os-Montes e em toda a Sociedade actual, a passagem da vida rural para o estilo de vida urbana, a “descida do monte às terras de Moab”. Essa mudança social constitui uma grande prova civilizacional e provoca em muita gente um doloroso lamento entre a austeridade e pacatez do passado, simbolizado no rio Nilo, e o medo do futuro, expresso no rio Jordão.Mas a tentação mais subtil da actualidade vem da nova cultura, a idolatria de um progresso reduzido à economia e á vida no mundo e desinteressado dos valores eternos: “acabe a paz do Sinai”, “passaram as codornizes, a fome e sede e maná”, “dançai, ó povos, dançai”, “depois, depois se verá”. Nessa perspectiva, “Despe-se do futuro o Povo da Promessa”, o sonho da Terra prometida, e “Morrem no presente o sonho e a Travessia”. O sonho “além Jordão” cede ao mundo “aquém Jordão”, às “terras de Moab”, um mundo sem transcendência, tema que será retomado no IV quadro.

Os frutos da terra prometida
3º quadro

Este quadro dos «Frutos da Terra prometida» é uma síntese das riquezas e belezas naturais de Trás-os-Montes e Alto Douro, desde Montalegre ao rio Douro, tema que se prolongará no IV quadro.
Faz-se também uma alusão à cultura literária e científica e artística de vários filhos do Douro e Trás-os-Montes, referindo discretamente dois autores desta região, já falecidos: Miguel Torga, de quem se transcrevem algumas expressões por ele criadas para caracterizar a terra transmontana ou «Reino Maravilhoso» (in Portugal), e João de Araújo Correia, referindo o título de um livro – “Montes pintados” –, alusivo ao Douro.

Despedida de Moisés e passagem do Jordão
4º quadro (2ª parte)

Este é o quadro síntese de toda a Travessia, o mais longo. A "Despedida de Moisés e a Passagem do rio Jordão", acto central na história do Êxodo, são o pretexto para falar da nova cultura e da inserção na Comunidade Europeia, entendidas por muitos como a súmula de todos os bens, mas, na verdade, carregada de interrogações acerca dos valores da vida humana, da família e da sociedade!
Após a passagem bíblica do Jordão e a entrada na Terra prometida tudo parecia ser fácil e foi, afinal, uma "nova travessia". A cultura da modernidade e a globalização criaram uma nova terra de Canaã, onde toda a sociedade faz uma nova travessia, sofre novas tentações e requer novos profetas que a advirtam com novas maldições e bênçãos.

Maldições:
Apresentam-se como novas tentações a instabilidade da família natural, a quebra do diálogo no seio da família e a sedução da vida nocturna, as várias ameaças à vida humana, a anarquia e desvios da sexualidade, o abandono das terras e a emigração forçada “havendo mais terra para ver que para semear”, o isolamento das regiões do interior, a fuga de capitais, a internacionalização do comércio com invasão de produtos estrangeiros e afastamento dos produtos locais, as carências sociais mormente na área da saúde, a quebra da natalidade, a droga e a exploração económica, a alteração dos hábitos alimentares, a urbanização especulativa e sem critérios humanos e artísticos, a perda da memória cristã e a presença das seitas e movimentos esotéricos.

Bênçãos:
Em contrapartida, afirmam-se como novas bênçãos o despertar da consciência da cidadania e interesse pelo bem comum, a vocação dos leigos nas escolas, na arte, nos hospitais e sectores de turismo, a importância da formação escolar, a chegada das novas estradas, a sensibilidade à ecologia e mesmo ao carácter icónico da natureza, a maturidade dos emigrantes, a frugalidade do povo e o sentido do essencial, a consciência do valor da vida, a estima pelo património da arte cristã (citam-se oito títulos marianos de outros tantos santuários), a luz da fé como clarificadora do passado e do futuro e a força da família na transmissão desses valores: “Haveis de transmitir este encanto aos filhos dos vossos filhos”.

Conclusão
É fácil de compreender que toda a vida, pessoal e social, se pode verter nesse esquema cultural: a vida é uma longa travessia do berço até à eternidade ou Terra Prometida que está sempre para além de qualquer Jordão; o Egipto e o faraó são o símbolo das limitações naturais e do mal radical donde é preciso sair continuamente; o rio Nilo é o símbolo da “fartura dos escravos” ou vida sem dignidade; o deserto é o espaço da liberdade, o lugar e o tempo da aprendizagem do exercício da responsabilidade; as tentações do deserto são todos os esquemas de vida e pensamento que afastam da viagem, quer refugiando-se no passado (a saudade das «cebolas do Egipto»), quer instalando-se no comodismo e prazeres do mundo presente, a planície de um mundo sem transcendência (“ficar em Moab”, “aquém Jordão”, “deixar morrer no presente o sonho do futuro”); baal é o símbolo típico da sensualidade pagã e da economia absolutizada; “passar além Jordão” é o salto permanente em ordem à realização do projecto divino da pessoa e da comunidade.
A Travessia, pela linguagem fortemente simbólica, per­mite uma leitura da vida da Diocese e dos dinamismos so­ciais. Haja em vista a referência às pontes para a união das tribos e à estrada "real " para Jerusalém: quando se escreveu o texto original elas figuravam como uma bênção do futuro, e já aí estão concretizadas na A 7 e A24 e melhoria do IP4.
Para uma leitura mais reflectida fazem-se algumas cita­ções bíblicas no texto, acrescidas de algumas outras, mor­mente das “maldições” e “bênçãos”, e que podem constituir um frutuoso exercício cultural.

D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real

Os excertos dos registos sonoros, aqui apresentados, foram realizados no concerto de Vila Real, no dia 22 de Outubro de 2006 e no concerto de Roma, no dia 30 de Abril de 2007. Foram intérpretes a soprano Inês Villadelprat e o tenor Fernando Guimarães, o Coral de Chaves sob a direcção do Maestro Fernando Silva de Matos, a Orquestra do Norte sob a direcção do Maestro José Ferreira Lobo e a Orchestra Tiberina sob a direcção de Massimo Scapin. Registos sonoros efectuados pelo Seminário de Vila Real (em Portugal) e o Engenheiro de som Antonio Cenciarelli (em Itália)

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