Da minha parte, muito obrigado... (*) - D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real
na igreja nacional de S. António em Roma momentos antes da
estreia de "Noiva do Marão", cantata para soprano, tenor, coro e orquestra.
(9 de Dezembro de 2000)
Pedem-me um depoimento sobre o Pe. Dr. Joaquim Gonçalves dos Santos e sobre o Oratório “Travessia”, para ser incluído numa saudação cultural ao conhecido compositor de Cabeceiras de Basto.
É uma tarefa delicada, esta de alguém, que não é versado na arte musical, falar de um amigo cuja vida se identifica com a sua obra de compositor. Por isso, mais do que uma reflexão sobre o seu estilo de compositor, o meu comentário faz a evocação de um contemporâneo do Seminário, testemunha a gratidão de um bispo pelas atenções recebidas e pelo contributo dado à diocese, e manifesta a estima por um ministério difícil.
Tendo ambos frequentado os Seminários de Braga em anos próximos mas diferentes e muito numerosos; não me foi proporcionado aquele convívio rotineiro que permite fazer a radiografia dos anos de juventude, e, após a ordenação, o ministério pastoral separou-nos ainda mais: a mim, levou-me para a zona litoral da Póvoa de Varzim; a ele, para o trabalho de educador no Seminário de Filosofia, avançando depois para a formação académica e artística em Roma. Ficou a unir-nos o convívio de algumas aulas comuns nos últimos anos do Seminário Maior, a conversa nos recreios e a estima pela música e composição musical, já conhecida no tempo do Seminário e desenvolvida pela vida fora.
Nos anos de Teologia a todos os alunos era exigido o estudo rigoroso das matérias teológicas, alguma cultura musical e o exercício fundamental do canto, mas, naquelas horas que todos arranjamos para os nossos amores culturais, enquanto uns farejavam uma revista de teologia que completasse a reflexão oficial ou as obras mais significativas da literatura cristã contemporânea ou mesmo os pincéis para tentar o sonho de uma tela, outros davam ao orfeão o brilho das suas vozes pacientemente treinadas em exercícios de naipes e prolongavam no harmónio o sonho de futuros ensaiadores de grupos corais nas paróquias. Havia ainda um grupo restrito de alunos que reunia frequentemente com o Dr. Faria para se iniciarem nos segredos da composição musical. Eram os “devotos da batuta”, como dizíamos com amizade académica. O Joaquim Santos fazia parte desse grupo reduzido de seminaristas que discretamente atravessavam os corredores acompanhados de pautas musicais rabiscadas a negro e encarnado.
A maioria dos alunos do Seminário gostava da música, de toda a música: tocada e cantada pelo orfeão em festas solenes ou pela assembleia dos alunos nos actos do culto diário, incluindo o canto religioso popular, predominante nas peregrinações da multidão a caminho do Sameiro e do Bom Jesus. Por isso, apreciávamos e admirávamos a coragem e a perseverança do grupo dos jovens “devotos”, e o aparecimento de algum colega compositor enchia-nos de orgulho. Mas entrar naquele laboratório da música e captar o “vento” que sopra onde quer e gravá-lo em pautas complicadas, com riscos e rabiscos, afigurava-se-nos uma aventura mais cansativa que ser cozinheiro no acampamento dos escuteiros em dias de vento.
Desses jovens teólogos candidatos a compositores, falava-se do Joaquim Santos como o “discípulo mais fiel ao mestre” e também como “o aluno que o mestre gostava de referir”, e, um pouco diluída, essa fama ainda hoje se mantém. Unia-os uma paixão inata pela música onde transparece a sensibilidade do povo do Minho e o que eu chamaria a liberdade criadora dentro dos cânones clássicos com algum gosto pela surpresa, e separava-os uma grande diferença temperamental: enquanto o Dr. Faria era um comunicador camiliano, um espírito aberto e folgazão, o Dr. Joaquim Santos tem sempre o ar contido de um órgão de catedral com todos os registos a funcionar e que, de vez em quando, desabrocha em concertos solenes. Como fazia o Dr. Faria, o Dr. Santos surpreende às vezes pela subtileza na exploração de uma palavra do texto, até de uma sílaba, pelo relevo dado a um instrumento ou a uma voz, a lembrar o voo solto de uma águia na amplidão do céu, que, mais à frente, cumprida a tarefa de revelar a beleza das alturas, volta a integrar-se jubilosa na constelação das outras aves.
Desde que vim para Vila Real, notei que as músicas do Dr. Joaquim Santos transpareciam na actuação de alguns coros da área do Tâmega, vizinha de Cavez: em Cerva, em Ribeira de Pena, em Mondim de Basto e mesmo em Chaves.
Pessoalmente confiei-lhe três textos não litúrgicos. Entregar um texto a um músico é uma experiência única, talvez semelhante ao gesto de um pai que entrega um corte de fazenda ao alfaiate para que dele talhe o fato para o casamento do filho. Esse gesto tem um ar de aventura porque, tendo custado grossa maquia, aquele tecido ficará marcado pelo corte do alfaiate, pelos botões e outros auxiliares de alfaiataria e será isso que, para bem e para mal, a sociedade recordará daquela fazenda.
Dessa encomenda repetida, a primeira alegria veio sempre da pontualidade e da limpeza da apresentação da obra, sem atraso nem rasuras, brochada e até encadernada. Tudo ali está minuciosamente descrito: a partitura geral com a divisão do texto pelas notas musicais respectivas, os acidentes musicais, a sugestão do ritmo e a distribuição em cadernos para a orquestra, os solistas e do coro. A segunda alegria veio da execução musical que fez sentir a suavidade e a força da composição, com algumas surpresas artísticas a fazerem apelo ao coração e à cabeça.
Duas daqueles obras seriam unicamente executadas em Roma por artistas estrangeiros, e esses textos foram algo martirizados pela pronúncia dos artistas, mas o tema aparece sempre conduzido por um fio de ouro que lhes dá unidade, engenhosamente distribuído pelos solistas e pelo coro e concluído em coral solene. A “Travessia” foi cantada somente por artistas portugueses.
O texto da TRAVESSIA é-me particularmente querido, pois nele vai a tentativa de traduzir em arte o tombo geográfico, histórico, teológico e pastoral da região transmontana que forma a diocese que Deus me confiou, imersa numa subtil mudança sócio-cultural, comum a todas as outras dioceses, o qual pode ser um exemplo da tentativa de evangelização da sociedade moderna através da arte. Sei que esta minha estima por esta obra é plenamente partilhada pelo Dr. Santos que nela se revê como síntese do seu percurso artístico. Alguém até me confidenciou que ele se emocionara ao compor determinadas passagens.
Quando o Dr. Santos me entregou a partitura da TRAVESSIA em dois grandes volumes belamente encadernados com um total de 628 páginas de pautas escritas à mão, tive o sentimento de receber das mãos de um copista medieval o antifonário de um mosteiro histórico. À noite fui ao harmónio da capela da casa episcopal e tentei cheirar o perfume que sobe dos “corais”, pois havia-lhe pedido que, ao compor a TRAVESSIA, ao menos os “corais” fossem cantáveis pelo povo transmontano. Algo pressenti.
Depois foi o trabalho de encontrar meios humanos e financeiros para a execução: a orquestra, os solistas e o coro. Para orquestra vali-me do contrato que algumas Câmaras Municipais têm com a Orquestra do Norte, e para Coro era ponto assente que devia ser constituído por gente da diocese, a fim de que, ao menos, um grupo de pessoas da terra aproveitasse artisticamente e ficasse a cantar e a sentir a mensagem da Travessia. Sempre me doeu ver pagar concertos a artistas que, no final, tudo levam consigo – o dinheiro e o exercício artístico. Assumiu aquela tarefa o Coral de Chaves com cerca de quarenta elementos, um número reduzido para o caso, mas cheio de brio e coragem. Tudo se conseguiu.
A angariação de meios financeiros para a execução da TRAVESSIA fez-me lembrar o que nos confidenciava o Dr. Faria acerca do drama dos compositores musicais: enquanto os outros artistas, um arquitecto por exemplo, vêem depressa conhecida a sua obra e colhem o fruto do seu trabalho, o compositor corre o perigo de ver a sua obra fechada a sete chaves nos arquivos e morrer pobre, pois a revelação da obra musical requer grande investimento financeiro e este ainda parece “inútil” a muita gente. Compreendi também a razão por que o Dr. Joaquim Santos corria a todos os lugares onde se executava alguma obra sua: não era a vaidade vulgar (ficaria escondido na sua cadeira se não o fossem arrancar ao seu recolhimento para dizer umas palavras de circunstância), era antes o desejo de ver à luz do dia o fruto do seu amor, como um pai extasiado ao ver o filho dançar.
A execução da TRAVESSIA constituiu uma série de espectáculos, gradualmente mais gratificantes, em Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Chaves, Alijó, Valpaços, e novamente em Vila Real. O primeiro ensaio do Coral com a Orquestra e Solistas em Vila Real foi acompanhado pelo Dr. Santos em silêncio doloroso e o primeiro concerto não correu bem porque o maestro (não era o titular) e alguns artistas facilitaram na apreciação do texto musical e tiveram de estudar a partitura. Com a crescente interiorização tomaram-se claros o dinamismo e a subtileza que, na aparente facilidade, percorrem toda a obra e que desabrocharam no concerto na Sé de Vila Real. O maestro M. Ivo Cruz, que assistiu na Sé a esse concerto integral na celebração do meu jubileu das bodas de prata episcopais em Outubro de 2006 (era já o sétimo concerto realizado na diocese), confidenciou-me que era uma obra notável, digna de ser cantada em Lisboa, e admirava-se de haver em Chaves um coro capaz daquela ousadia.
Recordando a minha reacção aos primeiros concertos, vem-me ao pensamento a história do fato de que falei há pouco. Eu conhecia bem o texto que escrevera, o seu corpo e a sua alma, e, ao ouvi-lo cantar, algumas passagens musicais pareciam transcrição dos sentimentos que me acompanharam na redacção do texto, mas outras como algum cromatismo e os recursos artísticos modernos, a barreira de fortes acordes instrumentais a separar os vários núcleos das “maldições” e das “bênçãos” – causavam-me surpresa, assemelhando-se a botões mal ajustados.
Afinal, nada está fora do lugar. A meu lado, tenho agora a girar o duplo CD do concerto dado em Roma, e, escutando-o de fio a pavio, é nítida a sequência de toda a obra, sem repetições cansativas, a cadência andante do povo que marcha pelo deserto, a interligação do narrativo e do dramático, do lírico e do heróico, a sedução dos corais que apetece cantar no fim do 1° quadro (Do rio Douro ao alto da fronteira), no meio do 2° (Do rio Nilo ao Jordão), e na apoteose final (Havemos de transmitir este encanto aos filhos dos nossos filhos).
Também aprendi do Dr. Santos que a distribuição de partes da mesma frase pelos dois solistas e os compassos tocados em exclusivo pela orquestra têm finalidades estéticas mas, por vezes, destinam-se também a dar aos solistas algum descanso para poderem aguentar o canto de passagens mais exigentes. Verifiquei assim que, além da arte da composição, o Dr. Santos tem presente o realismo da execução.
Um aspecto me agrada especialmente no tecido musical da TRAVESSIA: a atenção ao texto, quase a cada palavra, a criação de pequenas unidades musicais dentro de cada quadro, mormente no 4°, mantendo sempre os sinais discretos de marcha. Quando se escreveu no 1° quadro o texto de cada uma das nove tribos, e no 4° as “maldições” e “bênçãos” em forma salmódica, desejava-se facilitar ao compositor o respectivo trabalho pela simples repetição musical das frases. O seu esforço, porém, vai ao ponto de criar música para cada um desses textos, como faz o poeta ao ajustar ao ouvido um búzio do mar que quer ouvir, neste caso o “mar de pedras” de Trás-os-Montes.
São ainda exemplares dessa escuta do texto, as músicas que vestem as premonições de Moisés sobre a “nova travessia além Jordão”, a descrição da nova paisagem cultural de “Canaã”, os “profetas novos desse mundo novo” (os leigos), os santuários marianos, o bruxedo, a proclamação das “maldições e bênçãos” agrupadas em núcleos musicais distintos para evitar a monotonia.
Daquela necessidade de o compositor escutar o texto, seja sagrado ou profano, falou-nos muitas vezes o Dr. Faria. No caso do Dr. Joaquim Santos, a capacidade de captar o “canto obscuro” do texto talvez ande associada ao treino de quem conhece o canto gregoriano, onde a música saboreia um texto latino sem o triturar nem marginalizar, e à sensibilidade de quem reside na fronteira do Minho e Trás-os-Montes.
A verdade é que, quanto mais se ouve a TRAVESSIA, mais transparente se toma essa aliança do corpo do noivo e do corte do fato, do texto e da música.
Da minha parte, muito obrigado.
Vila Real, 13 de Outubro de 2007
Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real
(*) Nota: Este texto foi escrito no Verão de 2007 para ser incluído numa evocação cultural do Dr. Joaquim dos Santos.
Entretanto, desde o Outubro seguinte até Março deste ano, andei pelos hospitais fora da diocese para fazer um transplante cardíaco e suspendi todo o contacto com amigos comuns. Informei oportunamente o Dr. Joaquim Santos do êxito do transplante feito em Janeiro, e, regressado à Diocese na Páscoa deste ano, encontrei-o radiante no Seminário de Vila Real onde ele vinha frequentemente para ajudar na formação de jovens e adultos.
Nos meses imediatos, chega inesperadamente a notícia fria da sua ida para o hospital por causa de uma anomalia cardíaca que diziam não ser grave, e, no dia de S. João, quando eu regressava de Coimbra de fazer uma consulta de rotina e me preparava para, nessa noite, assistir com ele no Teatro de Vila Real a um concerto em favor do novo órgão de tubos da igreja de Santo António dos Portugueses em Roma, corre a notícia seca da sua morte!
O concerto realizou-se sem qualquer referência ao acontecimento, ainda que todos soubessem. No final, o pianista Nuno Pereira, que veio de Colónia (Alemanha) dar o concerto e desejava ver pessoalmente o rosto do compositor cuja obra já conhecia em grande parte, era um jovem desolado: havia incluído no programa do concerto o “Prologus”, uma peça do Dr. Joaquim dos Santos para piano com “seis impressões musicais sobre o Evangelho de S. João” e, paradoxalmente, tocara-a no dia da morte do seu autor sem nunca poder ver o seu rosto vivo!
Deste modo, o texto que eu havia escrito para uma homenagem em vida adquire agora a solenidade e transparência da morte do Dr. Joaquim Santos. Reli o texto nesse dia e é publicado depois do seu funeral. Mantém a forma original da redacção, inclusive o tempo presente dos verbos, o tempo da vida em acto.
Não é um elogio fúnebre, embora tenha, a partir de hoje, ressonâncias de grande saudade e da distância que a eternidade provoca mesmo em quem tem fé. À mensagem objectiva do texto da Travessia, acrescenta-se inevitavelmente a conexão das circunstâncias pessoais da “travessia” do compositor: a sua gratidão pelo facto de ter nascido numa família do campo onde a música ocupava lugar de relevo (seu pai e avô paterno tocavam guitarra, flauta transversal e harmónica) e que transparecerá na bênção das famílias que "juntam na mesma tenda as crianças e os velhos porque sentem que os dois são arcos da mesma ponte”; a dedicação ao seu inesquecível professor de música no Seminário cuja fotografia tinha no seu gabinete de trabalho aflorada na bênção dos que “choram a morte dos amigos para além dos trinta dias porque o seu peito não é um mar morto e a vida está para além da vida”; a sua morte, pressentida na “noite que descera sobre os olhos de Moisés” mas que “não descera sobre a alma do profeta”, que, “cheio da alegria da madrugada pascal”, ouve “à distância hinos na Terra amada”.
Por isso, nunca mais ouvirei do mesmo modo cantar a premonição de Moisés na despedida do povo no Jordão: “vais entrar, Israel, na terra além Jordão”, nem o intróito da orquestra ao capítulo das “bênçãos” a anunciar o misticismo da “nova travessia” que ele fora buscar à melodia popular do canto das almas na Quaresma. Esse recurso fará memória da sua atenção à alma cristã do povo das duas margens do Tâmega e abrirá um pouco o segredo do tom misterioso e suave das suas composições.
Algumas condições da morte do Dr. Joaquim Santos fazem-me acudir ao coração as mortes do Dr. Faria, seu mestre (que visitei no hospital de Santo António, Porto, durante a última doença), de Mons. José Fernandes da Silva, seu colega de composição (com quem durante anos confrontei aflições de doenças mútuas e suas diferenças), e do próprio Dr. Joaquim Santos, vítima de uma crise cardíaca no ano em que me felicitou pelo transplante do coração! Todos eles me parecem homens precocemente gastos pelo moinho da criação artística que rodopiava noite e dia em seus corações e lhes travou a disponibilidade para cuidarem da saúde.
S. João registou no seu Evangelho (7,37) que, “no último dia, o mais solene da festa, Jesus dizia à multidão que rios de água viva brotariam do peito daqueles que cressem n' Ele”. O dia do funeral do Dr. J. Santos foi o último dia da festa da vida que ele orientou sempre para o Criador. Nesse dia, que será o sétimo ou o oitavo, sinto-o plenamente associado no céu ao coro dos outros Santos e compositores que beberam da mesma fonte da beleza – o Espírito de Jesus Cristo.
Vila Real, 25 de Junho de 2008, dia do seu funeral em Cavez.
Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real
É uma tarefa delicada, esta de alguém, que não é versado na arte musical, falar de um amigo cuja vida se identifica com a sua obra de compositor. Por isso, mais do que uma reflexão sobre o seu estilo de compositor, o meu comentário faz a evocação de um contemporâneo do Seminário, testemunha a gratidão de um bispo pelas atenções recebidas e pelo contributo dado à diocese, e manifesta a estima por um ministério difícil.
Tendo ambos frequentado os Seminários de Braga em anos próximos mas diferentes e muito numerosos; não me foi proporcionado aquele convívio rotineiro que permite fazer a radiografia dos anos de juventude, e, após a ordenação, o ministério pastoral separou-nos ainda mais: a mim, levou-me para a zona litoral da Póvoa de Varzim; a ele, para o trabalho de educador no Seminário de Filosofia, avançando depois para a formação académica e artística em Roma. Ficou a unir-nos o convívio de algumas aulas comuns nos últimos anos do Seminário Maior, a conversa nos recreios e a estima pela música e composição musical, já conhecida no tempo do Seminário e desenvolvida pela vida fora.
Nos anos de Teologia a todos os alunos era exigido o estudo rigoroso das matérias teológicas, alguma cultura musical e o exercício fundamental do canto, mas, naquelas horas que todos arranjamos para os nossos amores culturais, enquanto uns farejavam uma revista de teologia que completasse a reflexão oficial ou as obras mais significativas da literatura cristã contemporânea ou mesmo os pincéis para tentar o sonho de uma tela, outros davam ao orfeão o brilho das suas vozes pacientemente treinadas em exercícios de naipes e prolongavam no harmónio o sonho de futuros ensaiadores de grupos corais nas paróquias. Havia ainda um grupo restrito de alunos que reunia frequentemente com o Dr. Faria para se iniciarem nos segredos da composição musical. Eram os “devotos da batuta”, como dizíamos com amizade académica. O Joaquim Santos fazia parte desse grupo reduzido de seminaristas que discretamente atravessavam os corredores acompanhados de pautas musicais rabiscadas a negro e encarnado.
A maioria dos alunos do Seminário gostava da música, de toda a música: tocada e cantada pelo orfeão em festas solenes ou pela assembleia dos alunos nos actos do culto diário, incluindo o canto religioso popular, predominante nas peregrinações da multidão a caminho do Sameiro e do Bom Jesus. Por isso, apreciávamos e admirávamos a coragem e a perseverança do grupo dos jovens “devotos”, e o aparecimento de algum colega compositor enchia-nos de orgulho. Mas entrar naquele laboratório da música e captar o “vento” que sopra onde quer e gravá-lo em pautas complicadas, com riscos e rabiscos, afigurava-se-nos uma aventura mais cansativa que ser cozinheiro no acampamento dos escuteiros em dias de vento.
Desses jovens teólogos candidatos a compositores, falava-se do Joaquim Santos como o “discípulo mais fiel ao mestre” e também como “o aluno que o mestre gostava de referir”, e, um pouco diluída, essa fama ainda hoje se mantém. Unia-os uma paixão inata pela música onde transparece a sensibilidade do povo do Minho e o que eu chamaria a liberdade criadora dentro dos cânones clássicos com algum gosto pela surpresa, e separava-os uma grande diferença temperamental: enquanto o Dr. Faria era um comunicador camiliano, um espírito aberto e folgazão, o Dr. Joaquim Santos tem sempre o ar contido de um órgão de catedral com todos os registos a funcionar e que, de vez em quando, desabrocha em concertos solenes. Como fazia o Dr. Faria, o Dr. Santos surpreende às vezes pela subtileza na exploração de uma palavra do texto, até de uma sílaba, pelo relevo dado a um instrumento ou a uma voz, a lembrar o voo solto de uma águia na amplidão do céu, que, mais à frente, cumprida a tarefa de revelar a beleza das alturas, volta a integrar-se jubilosa na constelação das outras aves.
Desde que vim para Vila Real, notei que as músicas do Dr. Joaquim Santos transpareciam na actuação de alguns coros da área do Tâmega, vizinha de Cavez: em Cerva, em Ribeira de Pena, em Mondim de Basto e mesmo em Chaves.
Pessoalmente confiei-lhe três textos não litúrgicos. Entregar um texto a um músico é uma experiência única, talvez semelhante ao gesto de um pai que entrega um corte de fazenda ao alfaiate para que dele talhe o fato para o casamento do filho. Esse gesto tem um ar de aventura porque, tendo custado grossa maquia, aquele tecido ficará marcado pelo corte do alfaiate, pelos botões e outros auxiliares de alfaiataria e será isso que, para bem e para mal, a sociedade recordará daquela fazenda.
Dessa encomenda repetida, a primeira alegria veio sempre da pontualidade e da limpeza da apresentação da obra, sem atraso nem rasuras, brochada e até encadernada. Tudo ali está minuciosamente descrito: a partitura geral com a divisão do texto pelas notas musicais respectivas, os acidentes musicais, a sugestão do ritmo e a distribuição em cadernos para a orquestra, os solistas e do coro. A segunda alegria veio da execução musical que fez sentir a suavidade e a força da composição, com algumas surpresas artísticas a fazerem apelo ao coração e à cabeça.
Duas daqueles obras seriam unicamente executadas em Roma por artistas estrangeiros, e esses textos foram algo martirizados pela pronúncia dos artistas, mas o tema aparece sempre conduzido por um fio de ouro que lhes dá unidade, engenhosamente distribuído pelos solistas e pelo coro e concluído em coral solene. A “Travessia” foi cantada somente por artistas portugueses.
O texto da TRAVESSIA é-me particularmente querido, pois nele vai a tentativa de traduzir em arte o tombo geográfico, histórico, teológico e pastoral da região transmontana que forma a diocese que Deus me confiou, imersa numa subtil mudança sócio-cultural, comum a todas as outras dioceses, o qual pode ser um exemplo da tentativa de evangelização da sociedade moderna através da arte. Sei que esta minha estima por esta obra é plenamente partilhada pelo Dr. Santos que nela se revê como síntese do seu percurso artístico. Alguém até me confidenciou que ele se emocionara ao compor determinadas passagens.
Quando o Dr. Santos me entregou a partitura da TRAVESSIA em dois grandes volumes belamente encadernados com um total de 628 páginas de pautas escritas à mão, tive o sentimento de receber das mãos de um copista medieval o antifonário de um mosteiro histórico. À noite fui ao harmónio da capela da casa episcopal e tentei cheirar o perfume que sobe dos “corais”, pois havia-lhe pedido que, ao compor a TRAVESSIA, ao menos os “corais” fossem cantáveis pelo povo transmontano. Algo pressenti.
Depois foi o trabalho de encontrar meios humanos e financeiros para a execução: a orquestra, os solistas e o coro. Para orquestra vali-me do contrato que algumas Câmaras Municipais têm com a Orquestra do Norte, e para Coro era ponto assente que devia ser constituído por gente da diocese, a fim de que, ao menos, um grupo de pessoas da terra aproveitasse artisticamente e ficasse a cantar e a sentir a mensagem da Travessia. Sempre me doeu ver pagar concertos a artistas que, no final, tudo levam consigo – o dinheiro e o exercício artístico. Assumiu aquela tarefa o Coral de Chaves com cerca de quarenta elementos, um número reduzido para o caso, mas cheio de brio e coragem. Tudo se conseguiu.
A angariação de meios financeiros para a execução da TRAVESSIA fez-me lembrar o que nos confidenciava o Dr. Faria acerca do drama dos compositores musicais: enquanto os outros artistas, um arquitecto por exemplo, vêem depressa conhecida a sua obra e colhem o fruto do seu trabalho, o compositor corre o perigo de ver a sua obra fechada a sete chaves nos arquivos e morrer pobre, pois a revelação da obra musical requer grande investimento financeiro e este ainda parece “inútil” a muita gente. Compreendi também a razão por que o Dr. Joaquim Santos corria a todos os lugares onde se executava alguma obra sua: não era a vaidade vulgar (ficaria escondido na sua cadeira se não o fossem arrancar ao seu recolhimento para dizer umas palavras de circunstância), era antes o desejo de ver à luz do dia o fruto do seu amor, como um pai extasiado ao ver o filho dançar.
A execução da TRAVESSIA constituiu uma série de espectáculos, gradualmente mais gratificantes, em Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Chaves, Alijó, Valpaços, e novamente em Vila Real. O primeiro ensaio do Coral com a Orquestra e Solistas em Vila Real foi acompanhado pelo Dr. Santos em silêncio doloroso e o primeiro concerto não correu bem porque o maestro (não era o titular) e alguns artistas facilitaram na apreciação do texto musical e tiveram de estudar a partitura. Com a crescente interiorização tomaram-se claros o dinamismo e a subtileza que, na aparente facilidade, percorrem toda a obra e que desabrocharam no concerto na Sé de Vila Real. O maestro M. Ivo Cruz, que assistiu na Sé a esse concerto integral na celebração do meu jubileu das bodas de prata episcopais em Outubro de 2006 (era já o sétimo concerto realizado na diocese), confidenciou-me que era uma obra notável, digna de ser cantada em Lisboa, e admirava-se de haver em Chaves um coro capaz daquela ousadia.
Recordando a minha reacção aos primeiros concertos, vem-me ao pensamento a história do fato de que falei há pouco. Eu conhecia bem o texto que escrevera, o seu corpo e a sua alma, e, ao ouvi-lo cantar, algumas passagens musicais pareciam transcrição dos sentimentos que me acompanharam na redacção do texto, mas outras como algum cromatismo e os recursos artísticos modernos, a barreira de fortes acordes instrumentais a separar os vários núcleos das “maldições” e das “bênçãos” – causavam-me surpresa, assemelhando-se a botões mal ajustados.
Afinal, nada está fora do lugar. A meu lado, tenho agora a girar o duplo CD do concerto dado em Roma, e, escutando-o de fio a pavio, é nítida a sequência de toda a obra, sem repetições cansativas, a cadência andante do povo que marcha pelo deserto, a interligação do narrativo e do dramático, do lírico e do heróico, a sedução dos corais que apetece cantar no fim do 1° quadro (Do rio Douro ao alto da fronteira), no meio do 2° (Do rio Nilo ao Jordão), e na apoteose final (Havemos de transmitir este encanto aos filhos dos nossos filhos).
Também aprendi do Dr. Santos que a distribuição de partes da mesma frase pelos dois solistas e os compassos tocados em exclusivo pela orquestra têm finalidades estéticas mas, por vezes, destinam-se também a dar aos solistas algum descanso para poderem aguentar o canto de passagens mais exigentes. Verifiquei assim que, além da arte da composição, o Dr. Santos tem presente o realismo da execução.
Um aspecto me agrada especialmente no tecido musical da TRAVESSIA: a atenção ao texto, quase a cada palavra, a criação de pequenas unidades musicais dentro de cada quadro, mormente no 4°, mantendo sempre os sinais discretos de marcha. Quando se escreveu no 1° quadro o texto de cada uma das nove tribos, e no 4° as “maldições” e “bênçãos” em forma salmódica, desejava-se facilitar ao compositor o respectivo trabalho pela simples repetição musical das frases. O seu esforço, porém, vai ao ponto de criar música para cada um desses textos, como faz o poeta ao ajustar ao ouvido um búzio do mar que quer ouvir, neste caso o “mar de pedras” de Trás-os-Montes.
São ainda exemplares dessa escuta do texto, as músicas que vestem as premonições de Moisés sobre a “nova travessia além Jordão”, a descrição da nova paisagem cultural de “Canaã”, os “profetas novos desse mundo novo” (os leigos), os santuários marianos, o bruxedo, a proclamação das “maldições e bênçãos” agrupadas em núcleos musicais distintos para evitar a monotonia.
Daquela necessidade de o compositor escutar o texto, seja sagrado ou profano, falou-nos muitas vezes o Dr. Faria. No caso do Dr. Joaquim Santos, a capacidade de captar o “canto obscuro” do texto talvez ande associada ao treino de quem conhece o canto gregoriano, onde a música saboreia um texto latino sem o triturar nem marginalizar, e à sensibilidade de quem reside na fronteira do Minho e Trás-os-Montes.
A verdade é que, quanto mais se ouve a TRAVESSIA, mais transparente se toma essa aliança do corpo do noivo e do corte do fato, do texto e da música.
Da minha parte, muito obrigado.
Vila Real, 13 de Outubro de 2007
Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real
(*) Nota: Este texto foi escrito no Verão de 2007 para ser incluído numa evocação cultural do Dr. Joaquim dos Santos.
Entretanto, desde o Outubro seguinte até Março deste ano, andei pelos hospitais fora da diocese para fazer um transplante cardíaco e suspendi todo o contacto com amigos comuns. Informei oportunamente o Dr. Joaquim Santos do êxito do transplante feito em Janeiro, e, regressado à Diocese na Páscoa deste ano, encontrei-o radiante no Seminário de Vila Real onde ele vinha frequentemente para ajudar na formação de jovens e adultos.
Nos meses imediatos, chega inesperadamente a notícia fria da sua ida para o hospital por causa de uma anomalia cardíaca que diziam não ser grave, e, no dia de S. João, quando eu regressava de Coimbra de fazer uma consulta de rotina e me preparava para, nessa noite, assistir com ele no Teatro de Vila Real a um concerto em favor do novo órgão de tubos da igreja de Santo António dos Portugueses em Roma, corre a notícia seca da sua morte!
O concerto realizou-se sem qualquer referência ao acontecimento, ainda que todos soubessem. No final, o pianista Nuno Pereira, que veio de Colónia (Alemanha) dar o concerto e desejava ver pessoalmente o rosto do compositor cuja obra já conhecia em grande parte, era um jovem desolado: havia incluído no programa do concerto o “Prologus”, uma peça do Dr. Joaquim dos Santos para piano com “seis impressões musicais sobre o Evangelho de S. João” e, paradoxalmente, tocara-a no dia da morte do seu autor sem nunca poder ver o seu rosto vivo!
Deste modo, o texto que eu havia escrito para uma homenagem em vida adquire agora a solenidade e transparência da morte do Dr. Joaquim Santos. Reli o texto nesse dia e é publicado depois do seu funeral. Mantém a forma original da redacção, inclusive o tempo presente dos verbos, o tempo da vida em acto.
Não é um elogio fúnebre, embora tenha, a partir de hoje, ressonâncias de grande saudade e da distância que a eternidade provoca mesmo em quem tem fé. À mensagem objectiva do texto da Travessia, acrescenta-se inevitavelmente a conexão das circunstâncias pessoais da “travessia” do compositor: a sua gratidão pelo facto de ter nascido numa família do campo onde a música ocupava lugar de relevo (seu pai e avô paterno tocavam guitarra, flauta transversal e harmónica) e que transparecerá na bênção das famílias que "juntam na mesma tenda as crianças e os velhos porque sentem que os dois são arcos da mesma ponte”; a dedicação ao seu inesquecível professor de música no Seminário cuja fotografia tinha no seu gabinete de trabalho aflorada na bênção dos que “choram a morte dos amigos para além dos trinta dias porque o seu peito não é um mar morto e a vida está para além da vida”; a sua morte, pressentida na “noite que descera sobre os olhos de Moisés” mas que “não descera sobre a alma do profeta”, que, “cheio da alegria da madrugada pascal”, ouve “à distância hinos na Terra amada”.
Por isso, nunca mais ouvirei do mesmo modo cantar a premonição de Moisés na despedida do povo no Jordão: “vais entrar, Israel, na terra além Jordão”, nem o intróito da orquestra ao capítulo das “bênçãos” a anunciar o misticismo da “nova travessia” que ele fora buscar à melodia popular do canto das almas na Quaresma. Esse recurso fará memória da sua atenção à alma cristã do povo das duas margens do Tâmega e abrirá um pouco o segredo do tom misterioso e suave das suas composições.
Algumas condições da morte do Dr. Joaquim Santos fazem-me acudir ao coração as mortes do Dr. Faria, seu mestre (que visitei no hospital de Santo António, Porto, durante a última doença), de Mons. José Fernandes da Silva, seu colega de composição (com quem durante anos confrontei aflições de doenças mútuas e suas diferenças), e do próprio Dr. Joaquim Santos, vítima de uma crise cardíaca no ano em que me felicitou pelo transplante do coração! Todos eles me parecem homens precocemente gastos pelo moinho da criação artística que rodopiava noite e dia em seus corações e lhes travou a disponibilidade para cuidarem da saúde.
S. João registou no seu Evangelho (7,37) que, “no último dia, o mais solene da festa, Jesus dizia à multidão que rios de água viva brotariam do peito daqueles que cressem n' Ele”. O dia do funeral do Dr. J. Santos foi o último dia da festa da vida que ele orientou sempre para o Criador. Nesse dia, que será o sétimo ou o oitavo, sinto-o plenamente associado no céu ao coro dos outros Santos e compositores que beberam da mesma fonte da beleza – o Espírito de Jesus Cristo.
Vila Real, 25 de Junho de 2008, dia do seu funeral em Cavez.
Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real